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Mostrando postagens de 2018

canto de sobrevivência

quando paira a fumaça em seus olhos e fica difícil estender os braços, tocar o oceano com as mãos em conha ou cruzar o céu em suas asas, lembre-se de resistir, de tragar a fumaça, mas não demais. não o suficiente para decompor sua estrutura perfeita, esse delicado arranjo singular de santo e pecador. você, assim como está, todo de preto se preferir. você, assim como é, vestido de noite e tímido no primeiro encontro, no primeiro toque. você, acima de tudo, você, um irmão, um amante, um amigo. nos tempos difíceis, quando for desconfortável ser você, estar na sua pele, crer na sua gente. lembre-se de manter a luz acesa, todo dia. e resistir.

paralisante desejo

uma pequena adaga se move no escuro do quarto, formigas passeiam livremente pelo seu corpo, a cara de horror estampa a vitrine que veste seus olhos, sua boca muda, gesticula coisas obscenas e breves, um óleo pegajoso que te gruda os braços, arranha teu rosto. cada hora do dia é um crime, existir preso e existir cansado, cercado de muros, espelhos, caminhos, confissões. uma pequena vela tremulando sozinha no vasto rio do esquecimento

flutuações sobre o espaço

um vórtice mágico de luz,  apareceu no buraco aberto, entre o teto e o sanitário, cintilações azuis, roxas, giroscópicas me atingiram. deitado, absorto em como as estrelas pareciam querer dançar através da ferida aberta no teto do banheiro, melodiosamente marcada por um único fio fino e prateado que se desenrolava preguiçoso sobre o oceano branco do porcelanato. eu me deixava ir através das luzes, através da fresta, através da gota, uma fome me nascia. e crescia. e crescia. e se esticava pelo meus ombros, pelo meu peito, meu estômago. minha pele, fundida à voracidade da água, molhava meus cabelos, esparramados à altura dos querubins espaciais e dos tremores. um corpo iluminado pela sombra de Saturno. um buraco no mundo que estufa e brilha.

viagens líquidas sobre iluminação natural

enquanto esboçava sorrisos elaborados para a câmera, levemente sensuais, imitando um modelo francês qualquer, reparei por um átomo de tempo, em como a luz se infiltrava pela minha pele, distraído do palco dos outros, meu próprio, indaguei sobre a fina película que envolve nossos olhos, sobre como vamos perdendo partes e ganhando partes e perdendo partes infinitamente na roda das coisas, que desde que o mundo é mundo que nada faz sentido. aplico um filtro rebuscado sobre a forma que eu vejo o mundo e o corpo que se move, exposto, animado pelas fantasias anônimas do público e por ele mesmo, dançando continuamente sobre túmulos e pátios e creches e escolas, uma sansara entre viver e existir. (re)existir, quando nada mais perece de fato.

feito de sol

hoje, enquanto perambulava no busão das duas, pensei nas pequenas coisas daquelas pessoas sonolentas que habitavam as cadeiras milimetricamente contadas, que sonho elas possuíam? indaguei-me sobre a validade das coisas não obtive resposta, apenas um tranco, o mundo vivo que se abre à seus pés, derrepente um tiro que acerta o peito. derrepente buzinas e flashes e outros líquidos que se derramam sobre mim

lágrimas de Tereza

a santa chora, piedosa encima do muro, distribui rosas e expõe suas lágrimas como feridas no céu noturno, cobre com teu manto os pequenos. os tortos. os desajustados. risca no céu, em fogo, todos os pecados. e chora. faz verter do homem, água. nossa senhora das lágrimas, germinai nosso pranto.

o tecido que tecemos

compomos sentido igual tecemos tecido? será que nos vestimos de sentido quando saímos bêbados e trôpegos pela cidade, imersos nas águas trêmulas do algoz? compomos sentido igual tecemos longos vestidos? daqueles de noite, dourados, mas que mascaram a sua nudez, tão sua. tão característica de você. imperfeita. compomos sentido igual tecemos contos pornográficos? cheios de tesão e poses e fotografias de como éramos ontem. jovens de tudo. inacabados. compomos sentido enquanto falamos da morte? e do amor? e das coisas obscuras entre as manhãs e as tardes? a morte, uma ave amiga? compomos sentido. vestido. amamos. fodemos. fizemos poses obscenas. fugimos. imperfeitos ontem. hoje. morremos?

contos que contamos ao sol.

pousa a tarde, ao lado do teu prédio. crianças correm da horta ao portão. um senhor me cumprimenta, aceno distraído, vidrado nos mistérios de o porquê você não desce. aquela tua vizinha, a do cachorrinho, disse que você saiu, apressado, de camisa amarrotada. olho insone. o sol é um círculo sob o mundo, pega fogo. acendo um fumo ali na rua 5. suave, enquanto a cidade avança sobre os carros. meu peito dói. caminho às cegas por aquele bairro novo, inclusive, nada de novo na floresta. os animais ainda se devoram. já são quase sete. nada de você, apenas avenidas. cães. ratos. tantas outras coisas menos líricas que você. e álcool, sempre tem o álcool né. eu mesmo nem sei das coisas, coisa alguma. apenas flutuo entre as pessoas. prédios. casas. visto minha cara. vadio, incinero pontas. pontes. cruz. desatando um nó. um rolo.

verão nos trópicos

não é impossível de imaginar que você devia mesmo ter caminhado plena, vestida de luz sobre a areia branca que humildemente se enroscava nas suas pernas. coladas no seu corpo. não é demais pensar nas inúmeras vezes que acreditamos estarmos certos sobre como o amor se comporta de forma ridícula ou como cada vez que contávamos segredos e estávamos nus, bem ali, enquanto a cidade dormia. tudo bem, as vezes, quase o tempo todo sentir medo. eu sinto. ela também. acredito que você esteja agora em algum lugar contando coisas nossas, de como éramos evoluidos. e tudo bem, tudo vai ficar bem enquanto ainda tiver sol. não é impossível de imaginar, é?

estrutura romântica sobre a selva

uma única luz cega brilha sobre o apartamento lá fora. água e folha, insetos sobrevoam nossa cama, desfazem-se em acrobacias perigosíssima recitando Tavares, o zunido das asas traduz o tédio em acaso, abre um pequeno vão fendido na casca da árvore em chamas, anuncia em língua de prata e encanto seu doce veneno, mais uma vez sua ausência (e sua fuga) mais uma vez venta em nossos olhos, morrem-se então os insetos kamikazes na busca incessante e na certeza de um instante, um único sopro de amor ou luz que renovasse a vida.

conteúdos elétricos

eu quero estender meus braços em amor, mas ele se afasta e se recolhe em suas viagens espaciais e em como os cães perambulam pelas ruas desertas, detalha liricamente cada pequeno grão deixado pelas pombas confortavelmente assentadas na janela ao lado da sua de onde jorra um infinito blues e uma luz roxa que ilumina seus olhos, um fio de prata corta seu rosto. por um segundo te vejo como é e me vejo no que vejo de você e então você passa.

disparos romanticos

a ponta da flecha cravada no meu peito dispara a memória de dias dourados, cruzados num fim-de-tarde, quando as moscas zuniam os teus ouvidos e você se debruçava sobre o rio. um raio de sol tapava a tua nudez, mariposas sobrevoavam teus cabelos soltos contra o vento da noite. uma pequena pérola rejeitada pelo mar e tuas mãos, duas conhas abraçando meu corpo de barro, desfazendo a estrutura complexa dos meus alicerces. a terra, habitada por você, uma aparição em meio ao caos.

obscuro desejo

a noite se aproxima, no seu bafo, flores juvenis despontam pelas calçadas. uma ave atinge o céu. e no vasto céu uma chuva de pequenas penas coloridas enfeitam o quintal dos fundos, estrelas neon fritam o cimento da cidade selvagem. um cão vadio uiva. no centro, um estremecimento, giro bidimensional do plexo nexo órbita flâmulas o véu sobre seu corpo, uma fagulha, entre estrelas que despencam

eu-anônimo

sua dor é um casaco espesso que te cai dos ombros e se arrasta por ruas pavimentadas sem verão, sua dor é uma capa que te embrulha os ossos em dia de temporal é quando a chuva encharca os olhos e seu corpo traça uma rota cega pelas esquinas vertendo minúsculas gotas brancas nos jardins públicos sua dor é aquele bicho acuado que não larga o osso, não sai pra brincar, nem se arrisca sua dor sou eu, baby e cada memória viva que te habita.

canto para minha morte

sua ausência desenha uma sombra sobre a cama, onde deito esperando minha morte e eu sei que ela vem, ela me chega todas as noites perto das três e parte sempre antes das luzes se acenderem, há margaridas murchas em seus cabelos, pinta no meu rosto um rastro de sal, come com seus olhos felinos e insones todos os afagos, esvazia de sentido as ruas desertas, as esquinas tão duramente cinzas choram por você então me veste de retalhos, fiapos de névoa, substâncias alquímicas que te amaldiçoam e te procuram, mas eu sei que você vem, eu sempre sei nos ossos quando você vem, abro as janelas para ver seus lábios repartindo um risco de riso que talvez também te ilumine. você, uma sombra solitária sobre a cama.

porta-estandarte

cruzam a ponte, os desassosegados, apressados, caminham pelo monumento sagrado em total desvaria, ávidos por um momento ardente que seja, que baste. sim, é meio-dia embebido pelas zilhões de saudades deixadas pelos nossos corpos-passageiros, os carros que trafegam em sentido colapso à nostalgia, bem-feito. mau-feito é o trânsito dos espíritos saudosos que se estrepam e se consomem no curso das esquinas. o porta-retratos, não guarda-chuvas. feat Julio Carvalho

cancioneiro do silêncio

cessaram as borboletas e os grilos, até as cigarras se calaram. nas estradas, nos beirais das sacadas, o que existe agora é só silêncio. lívido, cancioneiro de outros tipos de acorde, o tom natural das coisas feitas do vazio. apagaram-se também os vagalumes tristes, exaustos do brilho da sua luz e da solidão dos seus brejos, pousaram suas infinitas asas. não cantaram, não voaram apenas calaram-se.

chamado de carnaval

uma vez ao ano. quando a lua cruza à esquerda na fonte raios lunares penetram a terra, fecundam a noite. os grilos. os pirilampos, as mariposas grávidas recriam deus. e os homens espelhos que são. morrem-se de medo. de pavor. de clamor. uma vez mais um samba quente na mesa. outra vez. bendito o sol na moleira. e as doses inteiras. de cio. de amor. de carnaval rogai por nós pecadores e vem.

astrologias aparentes II

Intransponíveis diabos armados. santos portadores da divina luz do anjo sci-fi. avante! ao armagedom quimérico e tecnológico da inexatidão. prima caolha do ano da zebra psicodélica. isso, enquanto capricórnio balança suas duas cabeças. flecha. e sina. cruzam a roda. peixes está desfalecido. levado à correr por teus braços. uma cratera que se levanta. o bafo misto de quem vomitou estrelas virgens. que se ascendem. e não transcendem. de novo. o breu que lustra os crifres do touro. um único tiro que principia toda a manada. um vórtice temporal de leão à áries. um relâmpago lunar em meio de céu. que não afasta os caçadores. nem ludibria suas vistas.